terça-feira, julho 26, 2005


Fogo na caixa dos postais

Nos últimos dias da passada semana arderam cerca de 4 000 ha no concelho de Arganil, na sua maior parte, integrados na Freguesia do Piodão.

A relevância da localização inicial da ignição, do percurso do fogo, da estratégia de combate, dos meios envolvidos ou do espaço temporal que levou à sua circunscrição é grande, mas neste caso concreto, o que importa neste momento perceber é a crucial importância da especificidade da área ardida e o alcance das suas implicações directas e indirectas.

O Piodão vem sendo referenciado como reconhecida imagem de marca turística, cartão de visita de toda uma Região, utilizada pelas mais variadas instituições públicas e privadas como símbolo corporativo, como exemplo de equilíbrio arquitectónico, de plena integração no meio, de remoto refúgio ou de pólo de cultura tradicional e eco-lazer.

Para além disso, é Aldeia Histórica, classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto Lei nº 95/78 de 12 de Setembro, que lhe confere um especial estatuto, nomeadamente no que às edificações diz respeito, transpondo para o IPPAR, e muito bem, o parecer vinculativo sobre toda e qualquer intervenção.

A questão é que, a experiência-Piodão, transcende a pura e simples visita à aldeia, é antes de mais um longo despertar dos sentidos, decorrente do percurso panorâmico da EM344, desde Coja, que vai permitindo estender o olhar pelos grandes horizontes da bacia do Rio Alva, bem como para o coração da Área de Paisagem Protegida da Serra do Açor.
Mas é mais.
È também o descobrir do elevado valor arqueológico dos achados em Chãs d’Égua e de outros aglomerados de montanha encavalitados em socalcos construídos a pulso, é o reconhecer de actividades intemporais que teimam em resistir aproveitando as últimas forças de uma escassa população demasiado envelhecida, e é também agora, o despertar da consciência colectiva, no que à necessidade de estratégias de sustentabilidade diz respeito, pela instalação da energia eólica na Serra do Açor.

Tudo isto está, neste momento, posto em causa.
Importa desde já perceber que O POSTAL ILUSTRADO DA REGIÃO CENTRO está indelevelmente marcado por um extenso manto negro, em continuo, sem excepção para uma fotografia individual, quanto mais familiar. É tão simples como isto: ardeu tudo. Um incontornàvel absoluto.

As consequências directas nas populações são brutais, afectando sobretudo a parca economia familiar, complementada pela agricultura de subsistência agora dizimada. Foram-se os pastos, a horta e a floresta. Ficaram as cinzas, as pedras e o que resta das árvores. Nunca se está realmente preparado para uma circunstância destas, realçando um global sentimento de impotência em relação ao elemento, servindo de pouco a velha relação e memória colectiva de e com o fogo. Os anos passam, o ciclo repete-se e os estragos são cada vez maiores.


A amplitude do sofrimento e da angustia é também dilatada pelo excessivo e por vezes desajustado tratamento mediàtico conferido pelos órgãos de comunicação que, em directo das chamas, não concorrem tanto para a informação pura e simples do desenrolar do incêndio e da estratégia de combate, mas sim para o explorar inaceitável das fortes emoções vividas pelos locais e servindo de veio de transmissão do desespero para familiares, emigrantes e amigos, à hora do jantar.

Enfim, estamos todos metidos nisto, os habitantes, os turistas, os agentes, os opinadores e os decisores. A hora é de avaliar perdas e procedimentos, diagnosticar e actuar estrategicamente a todos os níveis. Prioridade às pessoas que nele habitam.
Este território é, tal como outras áreas ardidas, neste momento uma folha, não em branco, mas negra, que aguarda decisões rigorosas e eficazes, prospectivas, sustentadas e imaginativas. Com rasgo.

Esta é, no fundo, a hora de retribuir ao Piodão e à sua Região, todo o turbilhão de sensações e emoções que esta já nos fez sentir. Arderem os socalcos e os castanheiros do Piodão não é a mesma coisa que arder uma qualquer encosta de eucalipto, não pode ser!
Façamos a diferença e juntemos todos os esforços para que se torne este infeliz acontecimento numa referência de recuperação de àreas ardidas no nosso País. Digo isto para além das óbvias expectativas de apoios especiais da Administração Central e dos diversos organismos desconcentrados; chamo aqui as Universidades, os pólos de investigação técnica e social, os agentes turísticos e culturais, os artistas plásticos e demais interventores, para que em conjunto com as populações e com os decisores políticos locais possamos ser acertivos e eficazes.

Aquela Paisagem demorou milénios a construir-se. Demore-se por ela o tempo que for preciso.